Coluna do Castello    
 

O último ato ritual da UDN

Brasília (Sucursal) — A homenagem do Congresso ao Brigadeiro Eduardo Gomes, herói autêntico dessa luta de cinco décadas pelo aperfeiçoamento da República, foi um rito udenista em que se estamparam o idealismo de atitude dos que se haviam organizado para devolver ao país um regime democrático e a perplexidade dos que nunca souberam como ajustar sua paixão pela causa às realidades emergentes.

A história da UDN foi a história de um conflito permanente entre a vocação e a insatisfação pelos resultados da luta, ao fim da qual seus dirigentes se viam frustrados na pregação cívica e impacientes em transformar a chocante realidade. Salvo em 1945, quando a campanha eleitoral havia sido precedida de unia operação militar de limpeza da área, todas as campanhas udenistas que se concluíram com, uma derrota nas urnas foram seguidas de conspirações com vistas a corrigir os desvios do pronunciamento popular. Foi assim em 1950, quando se tentou impedir a posse de Getúlio Vargas, foi assim em 1955, quando a rejeição do teste eleitoral se desdobrou numa série de ações frustradas contra a efetivação do processo político.

Quando após duas campanhas memoráveis na praça pública, a candidatura do Brigadeiro Eduardo Gomes foi substituída pela do General Juarez Távora, o novo candidato tentou desvincular-se do Partido que lhe oferecia a legenda para apresentar-se de público sob o patrocínio de uma pequena agremiação, no entanto preservada do estigma das derrotas sucessivas. O General Távora, inserido tanto quanto seu antecessor glorioso na legenda revolucionária da década de 20, não conseguiu romper o ciclo estreito da influência udenista, e alcançou uma nova derrota cívica sob a bênção dos milhares de lenços brancos. Para que a UDN ganhasse urna eleição foi necessário em 1960 endossar uma candidatura que nascera nas ruas e que estava prestes a ser acolhida por qualquer legenda.

A eleição do Presidente Janio Quadros foi o momento de glória da UDN, mas o fato é que já essa vitória trazia no bojo os elementos de rejeição que iriam se coroar com o episódio da renúncia. O candidato recusou-se a uma identificação com o Partido, cujo primeiro candidato a Vice-Presidente teve de amargar situações tão incômodas que sua candidatura foi arredada. Mílton Campos, o novo candidato, soube pôr-se acima da disputa através da qual o futuro Presidente pretendia aparecer de público liberto da UDN „seja pela aceitação de candidato concorrente na mesma chapa ao mesmo posto, seja pelas alianças de bastidores com o candidato adversário a Vice-Presidente. Eleito e empossado Janio Quadros, a UDN dentro de pouco tempo viu-se reduzida à contingência de uma das facções com as quais o Governo manobrava em busca de metas políticas próprias e apartidárias.

A luta udenista ao longo do consulado João Goulart foi uma permanente trama em que aos fatores de contestação legal e política se afirmava o permanente apelo à intervenção militar. Quando esta se tornou inevitável, em função de fatores gerais, a UDN sentiu-se por um momento realizada, associando o apoio das Forças Armadas a seu compromisso democrático. Não tardou, todavia, que se mostrasse precária tal associação, que teve alguns momentos de plenitude somente no curso do Governo Castelo Branco. O processo revolucionário iria destruí-la como aos demais Partidos e herdar dela tão-somente o moralismo político, semente plantada em terreno fértil. Alguns udenistas foram distinguidos com funções públicas de relevo mas o núcleo atuante do Partido dissolveu-se e dispersou-se. De tudo resta hoje alguma nostalgia, algum sentimento de culpa e alguma esperança insistente. Com crueldade pessedista, o Sr. Tancredo Neves observou certa vez, ao longo da crise que levara à implantação de uma Junta Militar, que aquele era o Estado Novo da UDN.

A festa do Congresso Nacional para homenagear o Brigadeiro Eduardo Gomes conservou a marca do drama udenista em que se revezam o amor à liberdade e a reverência às Forças Armadas, em cujo seio irrompera em 1922 o grão do inconformismo com instituições espúrias. Os oradores foram o Senador Magalhães Pinto, que tomou a iniciativa em 1964 e hoje viceja na periferia .do sistema, o Deputado Célio Borja, que floresceu sob Carlos Lacerda, e o jovem Deputado Henrique Alves, herdeiro de um rapaz que em 1946 representava no Congresso a mocidade mobilizada pela campanha brigadeirista.

Fez bem o Senador Magalhães Pinto em associar as duas datas, 1922 e 1964, pois a segunda foi o desfecho remoto da primeira. O Brigadeiro Eduardo Gomes permaneceu fiel à sua missão e à sua vocação ao proclamar, na idade provecta, que "só a liberdade cria valores estáveis." A realidade e a aspiração, como sempre, na linha das eternas contradições em que se traduziu a eterna vigilancia. É possível que esta tenha sido a última cena ritual da UDN.

Carlos Castello Branco

 
Jornal do Brasil 30/06/1972