Coluna do Castello    
 

O que define uma democracia

Brasília ( Sucursal) — Houve um tempo em que os críticos literários costumavam citar uma definição de Mário de Andrade segundo a qual conto é tudo aquilo que seu autor chama de conto. Com isso o escritor paulista dava menos uma definição do que uma síntese da sua perplexidade ao tentar definir gênero literário de características tão imprecisas.

Sua frase veio-me à lembrança agora, ao concluir a leitura do último discurso do General Médici, pronunciado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Não há paralelo exato entre o conceito de Mário de Andrade e o que transcende da dissertação presidencial sôbre o regime democrático. Mas há o risco de que interpretações livres, tendentes a lisonjear o pensamento oficial, levem as coisas até aquêle extremo. Evidentemente, democracia não é todo e qualquer regime que seus autores chamem de democracia.

Dito o que, não há como negar validade, desde que devidamente situada, à idéia proclamada pelo General Médici, de que "a democracia, como forma de convivência política, não constitui categoria lógica, imutável no tempo e no espaço, porém conceito histórico, sujeito às revisões impostas pela conveniência social." Observe-se desde logo que está implícita a distinção entre democracia como ideal e democracia como forma. O Presidente refere-se portanto a manifestações concretas, sociais, da democracia, ou seja, aos regimes democráticos que existem ou tenham existido.

Sua afirmação tem conteúdo científico, pois é de verificação cotidiana que as instituições que configuram os regimes democráticos variam no tempo e no espaço, refletindo peculiaridades da época e das nações que se organizam sob a aspiração de evoluir dentro de um tipo definido de convivência política. Os modelos históricos, construídos em países anglo-saxônicos, em países latinos, em países orientais, etc., vinculam-se a fatôres diversos e específicos.

A História nos mostra democracias sob forma monárquica ou republicana, sob sistema presidencialista, parlamentarista ou colegial de Govêrno, em nações organizadas como unidade ou como federação ou confederação. Dentro delas, constituem-se Partidos, em regime bipartidário ou pluripartidário, com sistema eleitoral majoritário ou proporcional. Há assembléias unicamerais ou bicamerais, representando o povo ou as regiões. Há os que adotam o sufrágio direto e o sufrágio indireto, o sufrágio universal e o sufrágio privilegiado. Há, enfim, uma gama numerosíssima de modos de efetivação política dos ideais democráticos.

Não se deve esquecer, por outro lado, que instituições que surgiram ou prosperaram em democracias são copiadas ou imitadas em países que se organizam sob inspiração ditatorial. Mussolini tinha seu Parlamento e os países comunistas quase sempre mantêm seus Congressos, cujos representantes frequentam as reuniões da União Interparlamentar. No entanto, apesar disso, não podem os regimes fascistas e comunistas, tal como êstes últimos se constituem na atualidade, reivindicar legitimamente uma identificação democrática.

Há, portanto, acima das realidades históricas uma essência, um substrato, cuja existência contamina as instituições e as define. A democracia reconhece-se por ser um sistema de convivência dominado por regras definidas e certas a regularem as relações entre o Estado e os cidadãos, sistema no qual êsses últimos desfrutam de direitos inerentes à sua condição de pessoa humana.

Os regimes democráticos modernos, geralmente chamados de democracias políticas, ainda não se mostraram suficientemente fortes e eficazes no resguardo do conjunto de direitos do homem, entre os quais, se a liberdade é o mais nobre, não é contudo mais importante do que a igualdade a qual tem se afirmado numa escala extremamente precária. Aos povos que, como o nosso, segundo reconhece o General Médici, desejam construir sua grandeza sob o regime democrático, cabe lutar por seu aprofundamento, com a expansão das garantias ao cidadão, nunca pela supressão de valôres essenciais ou pela substituição de uns valôres por outros.

No pleno exercício da sua soberania, o Brasil pode e deve definir, na opção democrática, os traços que melhor consultem aos interêsses do povo. A evolução não se pode dar, todavia, no sentido da eliminação dos valôres essenciais da democracia, que não se confunde com suas formas históricas e que, como se viu, pode se viabilizar através de um sem-número de formas. O essencial é manter vivos os direitos e garantias sem os quais não há como chamar de democracia a qualquer regime político que as circunstancias imponham a um país. Se as instituições são nacionais, não se deve esquecer que os princípios que as inspiram são universais.

Carlos Castello Branco

 
Jornal do Brasil 22/10/1970