Coluna do Castello    
 

Sobre a CPI das torturas

Brasília — O Senador Paulo Brossard, líder do MDB no Senado, decidiu levar à bancada o requerimento do Senador Orestes Quércia propondo a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as denúncias sobre torturas. O problema, como se sabe, é delicado e, malgrado a insistência do representante de São Paulo, o veredicto da bancada será essencial para a obtenção do número de assinaturas suficiente para criar a CPI.

Está abandonada por inócua a alternativa de levar o assunto ao exame da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, órgão no qual o Governo dispõe de tranqüila maioria e que, por deliberação anterior, mantém sob sigilo os debates que se travam nas suas reuniões. Essa comissão, fruto de um projeto do Ministro Bilac Pinto, mostrou-se inoperante para reparar a paralisação da Justiça, nos momentos de exceção, na identificação e na punição dos crimes contra os direitos humanos.

Mas receia-se no MDB que, por sua amplitude, a CPI se torne igualmente inócua. As comissões de inquérito são permitidas pela Constituição e pelo Regimento das Câmaras Legislativas para apuração de fatos concretos. Por considerar o assunto desse ângulo, o Senador Brossard tentou, inicialmente, convencer seu colega de São Paulo a fixar um fato determinado para que sobre ele se realizassem investigações. Esse fato concreto poderia ser, por exemplo, o do desaparecimento do ex-Deputado Rubem Paiva, caso em torno do qual se poderiam conduzir diligências objetivas e ouvir pessoas que estivessem diretamente ligadas ao desaparecimento e à falta total de informações idôneas sobre o destino do malogrado parlamentar.

A sugestão, no entanto, não mereceu a atenção ao Sr Orestes Quércia, o qual parece preferir o risco de uma investigação genérica sobre casos de torturas, que não podem ser previamente definidos nem mensuráveis, ao exame de um fato determinado, conforme o espírito e a letra da lei. Mas ao líder do MDB não cabe repelir liminarmente a iniciativa de um senador, que tem a respaldá-la a convicção generalizada, de que há numerosos casos de abuso de poder a serem apurados neste momento de abertura política.

Não escapa aos políticos do MDB a circunstância de que tal apuração se apresenta destituída de objetividade num momento em que as pessoas às quais são atribuíveis os excessos de repressão se encontram ainda sob a cobertura do aparelho de segurança. Sabem os dirigentes do MDB que não poderão convocar generais para responder por atos de seus subordinados, os quais continuam convencidos de ter agido, nas circunstâncias aludidas, como defensores da ordem e salvadores da pátria, ameaçada pela subversão comunista. Os que eventualmente tenham praticado abusos se julgam devedores da gratidão da pátria e não réus de crimes contra direitos humanos.

Essa arraigada convicção se expande pelas frações majoritárias das Forças Armadas, o que seria suficiente para desaconselhar um desafio que o MDB não tem condições de levar as últimas conseqüências. A alternativa seria, caso persista a intenção de convocar a CPI das torturas, fixar como objetivos a audiência de algumas personalidades de elevada responsabilidade, cujos depoimentos serviriam de base a uma denúncia pública da ocorrência daqueles abusos e a cobrança ao Governo de medidas de reparação das vítimas das torturas e de punição dos responsáveis por tais abusos. Mais do que isso não seria permitido a uma comissão parlamentar assentada ainda sobre o frágil esquema de um regime em transformação.

Quanto à personalidades que poderiam ser ouvidas numa investigação que não deveria prolongar-se para evitar reações contrárias a normalização democrática, citam-se os Generais Augusto Fragoso e Rodrigo Otávio Miranda Jordão, que exigir das Auditorias Militares apuração de denúncias objetivas de torturas; do advogado Sobral Pinto; do ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil com notória luta concreta contra alguns casos de tortura; ao repórter que assinou a reportagem da revista Veja, alvo de uma denúncia do Ministro ao Exército, e de poucos mais que poderiam respaldar uma declaração pública da existência de torturas e de uma cobrança do Poder Executivo das medidas inerentes à sua esfera de ação.

A questão, por sua delicadeza, está sendo examinada criteriosamente pela bancada do MDB no Senado preocupando-se a liderança com a prévia definição do alcance das investigações para a hipótese de a maioria da representação oposicionista apoiar o requerimento do Senador Orestes Quércia. O requerimento, por enquanto, oferece mais riscos do que perspectivas de uma operação bem-sucedida da Oposição.

Enfim, a transição fundada na distensão lenta e gradual não gerou liquidez suficiente para ações decisivas de resguardo aos direitos humanos. É preciso que, mediante atos, o Governo do General Figueiredo avance bastante, além dos limites traçados pelas cautelas do General Geisel para que as instituições possam operar em plena autonomia. Obviamente, há de se esperar algum tempo.

Carlos Castello Branco

 
Jornal do Brasil 20/03/1979